-- Você é o Mederovsk?
-- Uéééé? Mas tu tá vivo?
Com cara de espanto, me interrogou um antigo companheiro das lides de antanho no velho Mato Grosso.
Bati três vezes na madeira que sustenta o beiral do boteco.
Senti uma sensação estranha, até esquisita.
Uma sensação nova, diferente, ressuscitei e não sabia.
-- Lamento desapontar, mas se morri, um sacerdote vodu me fez regressar a vida e não estou naquele estado maléfico com o corpo malcheiroso e sem alma.
O infeliz ainda insistiu:
-- Me falaram que tu tinha passado dessa pra outra......
-- Amigo, não entendo muito de dessas coisas, mas não estou em um estado de transe cataléptico como ¨morto vivo¨, nem reduzido ao nível mental de uma pessoa lobotomizada, uma pessoa a quem se extirpou parte do cérebro.
Senti um calafrio na “espinha” e insisti com o espantado amigo:
-- Me disseram que morto não fala, que morto não vê, que morto não chora, que morto não pensa, me disseram que morto não fala o que pensa, mas eu falo, eu vejo, eu choro, eu penso... Não! Eu não sou morto-vivo.
-- Seuzé (Seuzé é o dono do boteco com a cerveja mais gelado do Coxipó).
-- Seu Zé, traga mais uma bem geláaaaada!
E, para espanto dos transeuntes, alcoólatras, bêbados contumazes, dos que me acompanhavam, de mim mesmo e de outros freqüentadores do festejado ambiente barístico passei a recitar em voz alta um poema que dizem ser de Pablo Neruda:
-- “Morre lentamente quem não viaja, quem não lê, quem não ouve música, quem não encontra graça em si mesmo.
Morre lentamente quem destrói o seu amor-próprio,
quem não se deixa ajudar.
Morre lentamente quem se transforma em escravo do hábito, repetindo todos os dias os mesmos trajetos, quem não muda de marca, não se arrisca a vestir uma nova cor ou não conversa com quem não conhece.
Morre lentamente quem faz da televisão o seu guru.
Morre lentamente quem evita uma paixão, quem prefere o preto sobre o branco e os pontos sobre os “is” em detrimento de um redemoinho de emoções, justamente as que resgatam o brilho dos olhos, sorrisos dos bocejos, corações aos tropeços e sentimentos.
(…).
Evitemos a morte em doses suaves, recordando sempre que estar vivo exige um esforço muito maior do que o simples fato de respirar. “
Passado o transe,depois de várias “saideiras”, depois da “penúltima”, no caminho de casa, encafifei uns pensamentos sorumbáticos:
-- Quem vai chorar o pranto mais sincero quando eu for dar o passo eterno?
-- Quem vai cometer os pecados que só eu cometia?
-- Se eu morrer muito cedo por imperfeição de um dia na direção?
O corpo ralado, coração se recusando a bater...
-- Se eu morrer cedo, vejam vocês...
-- Se eu morrer cedo lembrem-se que no meio da desesperança mantive sempre acesa a chama...
-- Se eu morrer cedo lembrem-se:
Viajei por caminhos pedregosos
cercado de ventos corajosos
fui nada mais do que eu...
-- Se eu morrer muito cedo sem ver os netos? Que triste será esse fim...
-- Se eu morrer cedo de infarto quem terá como eu tive pensamentos primaveris pornográficos?
--Se eu morrer cedo de preocupação quem vai pegar na minha mão?
-- Se eu morrer cedo de saudade dos meus amores miseráveis quem plantará a saudade como eu plantei?
-- Se eu morrer cedo quem vai fazer como eu o que ninguém fez?
E, tu amigo,se eu morrer cedo eternize-me em tuas lembranças, senão eu volto e puxo o teu pé!
-- Uéééé? Mas tu tá vivo?
...
*Em homenagem ao Violante e o Navarro, testemunhas de minha “volta”.
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