Há mais de 1500 anos atrás...
Isso se passou no período das trevas da Botocúndia.
Qualquer semelhança com fatos da atual história botocundiana , constitui mera coincidência com os tristes fatos do passado.
“- Teje preso, cabra!
- Como? Eu? Preso?
- Preso!
- Não matei, não traí... Bem... roubar, rôbei um poquim!
- Quer bancar o espertinho pra cima de mim?
- Já disse, não matei, só rôbei um poquim , isto é, um desviozinho curto, de dinheiro público.
- Não roubou porque não houve violência explícita, seu cabra!!! Como? Não sabe o motivo? O quuuuuuêêêêê?
- Então é assim, não é? gritou o guarda já alterado e desferindo um chute de bota nos testículos do infeliz e brandindo um cassetete de pau-brasil pelo alto da cabeça.
Na mesma hora o sangue desceu em bica e o 171 rodopiou para cair, mas o polícia o pegou pelo braço e o arrastou rua afora, seguindo no rumo da
delegacia.
¨Vamos explicar isto direitinho ao delegado, cabra safado!¨ dizia a autoridade entre uma cacetada e outra.
Só se ouvia era o rufar do cassetete no quengo e no lombo do 171.
A sorte é que o prédio onde funcionava a delegacia não era longe (para desgosto do policial), senão o pobre diabo não chegava lá com vida.
- Doutor, este é o desgraçado que tava roubando o povo, desviando dinheiro da saúde, das ambulâncias, da segurança... disse o polícia, dando a última bordoada no 171 que se encolheu todo soltando um ai lancinante e desmaiando em seguida.
- Joga um balde dágua no cabôco pra ele tornar, ordenou o delegado, já abrindo um pacote do fumo, comprado ali no Porto e pegando uma palha bem escolhida para um cigarro pé duro, coisa muito do seu agrado!
Com a baldada dágua o 171 recuperou os sentidos e foi jogado na mesa do interrogatório, frente a frente com o delegado, sujeito encorpado, sempre suando por todos os poros, avermelhado, as mãos deste tamanho e os braços desta grossura.
Pela boca faltava um incisivo, mas um bigode assustador encobria a falta do dente.
- Nome? Inquiriu ameaçadoramente o delegado soltando uma baforada de fumo.
- Mané da Silva; mas vosmicê pode me chamar só de 171.
- Onde mora?
- Sabe, Doutor, ultimamente não tenho morada certa, não.
- Então é um desocupado, rua acima, rua abaixo, hein?
- Mas, doutor....
Mané da Silva não teve tempo de concluir a sua resposta, pois o delegado, num acesso de cólera, julgando-o com malandragem dissimulada, desceu-lhe o braço na pá do pescoço derrubando-o da cadeira.
¨Levem-no ao xilindró, que vou lavrar o flagrante. Disse isto desferindo mais um tabefe nas “zoreia” do 171... roubando do povo! Cabra safado!”
Só se ouviu o gemido do 171 e um ai esganiçado de cão escorraçado.
- O Doutor não vai levar ele, pela boca da noite, pra conversar com o “tio joão”? Perguntava insistentemente o guarda.
- Ora se vou! E então pra que é que sou delegado desta merda? Quando escurecer, a gente vai dar um banho nele. Não esquece de levar o rabo de tatu.
É uma chibatada e um mergulho; uma chibatada e um mergulho, entendeu?
Tu parece não conhecer o sistema, Cabo Anselmo.
Prende-se o cabra, desce-lhe a guajuvira; arranja-se-lhe uma hérnia, quebra-se-lhe uns dois ou três dentes da frente (lembre-se que tem que ser os da frente para desmoralizar o sujeito), depois a gente diz que o preso desacatou a autoridade e resistiu à prisão. Se por acaso o bicho vier a desencarnar, a gente diz que ele fugiu. É assim que funciona o sistema, não se esqueça!
- Correto, doutor delegado! confirmou o cabo, empertigando-se todo e batendo continência.
- Cabra bom! Grunhiu o delegado numa nuvem de fumaça.
Enquanto esperavam pelas trevas da noite, jogaram o pobre diabo numa cela imunda, onde estavam presos alguns vadios e ladrões de galinha, e, ele por lá ficou a gemer e a conferir o estrago que lhe fizeram pelo corpo todo.
Daí a pouco bateu a febre e Mané Da Silva começou a ter convulsões e vômitos.
¨Este não agüenta outra sova. Se forem ter com ele na Lagoa, de lá só volta pra cidade dos pés juntos, ou vira isca igual tuvira, comentou entredentes, um piolho de prisão.
Uma poça de sangue se formou onde o pobre diabo estava estirado, e uma nuvem de varejeiras num zumbido ensurdecedor compareceu para refestelar-se nas feridas abertas pelo cassetete do cabo.
O carcereiro, homem bom, crente e temente a Deus, vendo o estado do detento, tratou de arranjar um mercúrio numa botica qualquer; mas não conseguindo o procurado, pegou de um pacote de sal e espalhou-o todo pelo corpo do Mané.
Tantas eram as feridas e escoriações que o sal, se houvesse uma só mais, não daria. Isto sem falar na suspeita de fratura de algumas costelas e nuns galos deste tamanho pela cabeça!
Toda a operação do bom homem foi feita às escondidas do cabo, pois se este soubesse de tal coisa, o carcereiro estava perdido.
O sujeito era dedo-duro e puxa-saco e tudo ia contar ao delegado, com acréscimos inexplicáveis. Um outro carcereiro já havia pegado dez dias de suspensão e uma transferência para Colniza.
A tarde caía e Mane da Silva não dava sinal de melhora.
Isto apertava o coração do carcereiro e ele não sabia o que fazer a não ser rezar algumas rezas costumeiras e pegar-se com o santo de sua devoção.
Na hora do almoço, em sua casa, acendera uma vela para Nossa Senhora e rezara umas ave-marias, pedindo sua interseção pelo preso.
Agora nada mais podia ser feito. Era esperar a proteção dos céus contra a impiedade da terra, e o cabo já aviava os instrumentos de tortura para a sessão prometida, assobiando uma modinha antiga, costumeira em tais casos.
Anoitecia! Nossa Senhora ficara insensível ao sofrimento do detento que se esvaia em sangue, apesar da salga!
Mas o pior aconteceria ainda, sem protesto e sem alarde, no silêncio da noite e na conivência das trevas. Anoiteceu!
- Cabo!
- Cá estou, doutor delegado, respondeu o cabo com ansiedade.
- Tá tudo pronto?
- E então? Que acha o doutor?
Quando iam buscar o podre diabo, o telefone tocou na permanência.
Era o prefeito que chamava o delegado para uma diligência urgente no Finca Faca, um sujeito descera um terçado num desafeto quase decepando-lhe o braço. O cabra estava amarrado no tronco de uma lixeira. Era só ir buscar o infeliz.
- Diabo! Gritou o delegado dando murros na mesa e se encaminhando para um velho jeep, seguido de perto pelo cabo. ¨Tem nada não; amanhã a gente termina o serviço¨, disse ao polícia.
Assim Mane da Silva, temporariamente, fora salvo da barbárie dos dois e o carcereiro exultava de felicidade...”
O resto dos fatos se perderam no tempo, no vazio da história; mas, se sabe que por muitos séculos a roubalheira do dinheiro do povo jamais voltou a acontecer nas terras botocundianas...
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