60 BATE À PORTA!
A partir dos últimos anos, passei a refletir sobre as voltas que cumpro em torno ao sol.
Sem perceber a cada ano de existência completamos uma órbita em torno à nossa fonte de luz.
A vida pode parecer curta, mas o percurso não é pequeno.
São 930 milhões de quilômetros. Cada uma.
Se você se acha sedentário, tire esta ideia da cabeça. Estamos viajando a 29,8 km por segundo, o que dá 107 mil por hora. Não é pouco para quem se julga imóvel.
Há mais de cinquenta e nove voltas atrás, eu não acreditava nisto. Nem mesmo na redondeza da terra.
As professoras tentavam em vão explicar-me a coisa, mas minha lógica era inabalável. Pegue uma laranja, professora. Ponha uma formiguinha sobre a casca. Em determinado momento, a formiga vai ficar de patas para cima. Ora, eu não estou de pernas para cima. Nem tenho notícias de que alguém no planeta viva assim. Nem poderia viver. Se a formiga consegue prender-se à laranja, isto é uma habilidade que não temos. Cairíamos no espaço.
Levou algum tempo para cair a ficha. Acho que só me convenci mesmo da esfericidade da terra quando vi as primeiras fotos tiradas por satélites.
Tive parentes que morreram sem acreditar que o homem havia chegado à lua. “Não pode - dizia um velho tio:” -, o céu é dos passarinhos. Sem falar que olho a lua todas as noites e nunca vi ninguém chegar lá”. Convicção é convicção. Ciência é outra coisa.
Daqueles dias para cá, já ciente da redondeza da terra, fiz uns poucos trajetos sobre sua crosta. Verdade que ainda hoje me parece plana. Mas deixa pra lá. É só tomar mais de uma garrafa de vinho e ela volta a girar sobre si mesma.
Juro que até já senti, nessas ocasiões, o deslocamento de pedaços de chão.. dizem que o Rio Grande está se afastando de Santa Catarina..
Voltemos ao resfolegar do planetinha em torno ao sol.
As primeiras quarenta voltas foram praticamente sem solavancos. Verdade que aos 30 lembrei-me que nessa idade Napoleão já havia conquistado o Egito e eu sequer organizara meus exércitos. Mas foi um desalento fugaz. Consolei-me lembrando a mim mesmo que meus propósitos não eram os mesmos do corso.
Foi na exata 40ª volta que senti uma desconfortável sensação de não-retorno.
Celebrava com amigos da velha Corporação , meu aniversário, em um aconchegante boteco no interior de Mato Grosso, quando me senti de repente adulto.
Exercera comandos e subordinações e tinha que voltar, agora, a base principal. As ocupações seriam limitadas as decisões politico partidárias.
O girar em torno a terra continuou sem maiores turbulências. Depois de algum tempo, meus parentes próximos “encantaram-se”; solavancos, trombadas mesmo. De repente, eu era conselheiro e não o aconselhado.
A nave, no entanto, continua sua trajetória , inexorável, sem freios.
Os transtornos de percurso começaram nos últimos afélios e periélios.
Coisas da vida, ou da longevidade, como dizem os médicos.
Continuo viajando.
Começo a lembrar-me de meus dias de guri. Das férias no campo, na casa de meus avós. Da sabedoria imensa dos mais velhos. Do vigor juvenil dos mais novos.
Não vi ainda a aurora boreal, mas, bebi bons vinhos, li livros fantásticos; Dom Quixote de la Mancha, o melhor; vivi experiências profundas e recorri muitas vezes as luzes do Espirito Santo Paráclito nas minhas angústias.
Quantas me voltas restam? Espero que muitas. Viagens siderais acabam cansando.
A todos que comigo estão no trem galáctico, desde os mais próximos, muito obrigado por me ajudarem nessa viagem, se não ajudei como devia , prestarei contas ao Grande Arquiteto.
Gracias, paisanos!
No mais, como decía Fierro,
“ Vamos, suerte, vamos juntos
dende que juntos nacimos,
y ya que juntos vivimos
sin podernos dividir,
yo abriré con mi cuchillo
el camino pa seguir.”
LÉO GONSAGA MEDEIROS
(Passageiro que embarcou na estação de São Francisco de Paula em 31 de julho de 1953
Léo Medeiros é um ser humano como qualquer outro.
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